Vera Maria Tietzmann Silva Goiânia, 7 de janeiro de 2017 A editora Cânone, de Goiânia, lançou no final de 2016 uma obra infantil nascida...
Vera Maria Tietzmann Silva
Goiânia, 7 de janeiro de 2017
Goiânia, 7 de janeiro de 2017
A editora Cânone, de Goiânia, lançou no final de 2016 uma obra infantil nascida de um projeto de pesquisa desenvolvido junto à Comunidade do Cedro, um antigo quilombo próximo à cidade de Mineiros, no Sudoeste de Goiás. A autora do texto, Maria Luiza Batista Bretas, é docente do Instituto Federal Goiano, instituição promotora da pesquisa, e este livro, de fato, surgiu como um subproduto dessa pesquisa, como uma necessidade que a autora sentiu em contar a história pouco conhecida do fundador dessa comunidade.
Diferentemente de outros quilombos, que reuniam escravos fugitivos, acossados pelo medo de donos cruéis, o Cedro foi criado por um escravo alforriado, que comprou a liberdade para si e sua família com o dinheiro obtido, ao longo de décadas, pelo trabalho remunerado que seu dono lhe permitia fazer em feriados e fins de semana. Num pedacinho de terra, também adquirido por ele, Francisco Antônio de Moraes, o Chico Moleque, deu início a uma pequena comunidade negra, congregando seus descendentes e algumas outras famílias. Para seu povo, ele ganhou a estatura de herói.
Esta história comoveu a autora, e ela decidiu contá-la, uma história verdadeira para ser compartilhada não apenas com as crianças do Cedro, mas também com outros brasileirinhos, afrodescendentes ou não. Conhecendo o trabalho do jovem ilustrador Santiago Régis, Maria Luiza pediu-lhe para fazer o projeto gráfico e a ilustração de seu livro, e é sobre essa leitura visual que nos iremos deter a seguir.
Dois elementos logo chamam a atenção do leitor ao manusear Chico Moleque, um sonho de liberdade, um relativo ao projeto gráfico, o outro relativo à ilustração.
No projeto, o formato do volume é quase quadrado (20 x 21 cm), porém o livro não se abre horizontalmente, da direita para a esquerda, como é usual, mas verticalmente, de baixo para cima. Assim, a cada virada de página o leitor se depara com uma prancha vertical dupla. Este artifício, conforme veremos adiante, facilitou ao ilustrador trabalhar visualmente com a questão das diferenças de classe, cruciais para o entendimento da sociedade no Brasil Colônia.
Quanto à ilustração, algo que logo impacta o leitor é a presença de duas cores dominantes, ambas de teor simbólico, o azul escuro e o amarelo forte. São as cores da noite e do dia, domínios da lua e do sol. Na capa e na folha de rosto, o título, primeiro sobre fundo azul e, depois, sobre amarelo, afirma ter o protagonista um sonho (noturno) de liberdade (luminosa). A escolha dessas duas cores certamente foi proposital e se alinha entre outras oposições que o livro, em seu texto e em suas imagens, propõe aberta ou veladamente ao leitor: liberdade x escravidão, céu x terra, passado x presente, juventude x velhice, cultura própria x cultura imposta, pobreza x riqueza, conforto x privação.
Nas capas e nas folhas de guarda a cor dominante é o azul, mas o amarelo do miolo já se insinua na forma de flores estilizadas, meros contornos de pétalas, três flores apenas em baixo, à esquerda, fazendo a transição para as folhas de guarda – esse breve hiato de silêncio que, no dizer de Angela Lago, prepara o leitor para a leitura. Esse espaço, tanto na abertura como no fechamento do livro, traz uma espessa ramagem negra sobre fundo azul, toda salpicada de flores. Anuncia-se, desta maneira, para o leitor uma história que se origina no seio da floresta, num amplo locus natural que logo ele saberá ser a África, o imenso entreposto de abastecimento de escravos à época.
A folha de rosto e as páginas 4 e 5, onde a narrativa começa, trazem um contraste agudo de cores. Primeiro, galhos secos sobre um violento fundo amarelo-ouro, depois, o negror de um céu noturno onde avulta, tomando quase a totalidade da página 4, uma imensa lua cheia rodeada de estrelas, planetas e cometas, com suas rotas tracejadas. Embaixo do pequeno texto, rente à margem inferior, há dois personagens cujas breves silhuetas em azul escuro pouco se destacam do fundo negro: uma criança que presta atenção às palavras de um adulto, um velho de costas arqueadas que aponta para o alto, para a lua.
A presença desse velho lembra a tradição dos povos africanos de preservarem na oralidade a sua genealogia ao recontarem infindavelmente, pela voz de um ancião, a história dos antepassados às novas gerações. O velho representado à página 5 conta para o menino a história de Chico Moleque, a mesma que o livro está prestes a revelar ao leitor. A enorme imagem da lua, esse grande espelho dos céus, reforça o vínculo especular entre o leitor e o menino sugerido pela ilustração.
Contradizendo o texto, que inicia afirmando que Chico Moleque “nasceu como qualquer outra criança”, a ilustração da seguinte prancha dá contornos místicos e cósmicos ao nascimento do menino. A lua cheia da página anterior converte-se em minguante, dentro da barriga da mãe negra e celeste, que inclina a cabeça ornada de contas brancas como estrelas e estende as mãos para a terra em oferenda. Seu menino é uma dádiva. Marcando a dobra de página, uma estrela, cuja queda é tracejada em amarelo, lembra a estrela de Belém e, logo abaixo do texto, se vê um bebê negro, movimentando pernas e braços. Não sobre uma manjedoura, mas sendo acolhido por mãos brancas de aristocráticos punhos rendados. O texto informa, então, que Chico Moleque é um menino escravo, capturado e vendido ainda na infância.
A próxima ilustração é uma bela visão do que ficou para trás, da liberdade que poderia ter pautado a vida do menino sob o sol da África, junto ao aconchego materno. É uma luminosa imagem das savanas e de seus animais, estampados na ampla saia da mãe, uma imagem que sugere movimento, amor e liberdade, situação que as naus portuguesas iriam destruir. O pano de fundo da seguinte prancha já não são as amplidões africanas, mas uma rosa dos ventos sobre cartas marítimas indicando direções a seguir. O movimento das saias maternas cede lugar às bravias ondas oceânicas, que se confundem com o ondulado das cabeleiras dos nobres, trazendo escravos para o Brasil. As embarcações que se equilibram sobre os cabelos são desenhadas como silhuetas negras para que não restem dúvidas sobre sua carga. São navios negreiros.
A virada de página revela claramente a intenção do ilustrador ao optar pelo formato que deu ao livro. A linha mediana que divide as páginas 12 e 13 é o retrato da sociedade da época: no alto, de roupas elegantes, rendas, meias e sapatos de fivela, os senhores; embaixo, de pernas nuas e pés descalços, os escravos. O traço com que são desenhados também atende a essa divisão social: a elite tem roupas e calçados bem delineados; os escravos parecem rudes esboços feitos a carvão. Uns e outros mostram apenas a metade inferior do corpo. Aqui, como de resto em todo o livro, os personagens não têm traços distintivos, o ilustrador não particulariza suas faces, não desenha olhos, bocas, narizes. São figuras anônimas, despersonalizadas, como Todo Mundo e Ninguém dos autos medievais.
Às páginas 14 e 15 começa a história de Chico no Brasil ao tempo do Ciclo do Ouro. Em meio a um cenário de casario colonial, o menino peralta que ora “estava aqui, [ora] já aparecia em outro canto” multiplica-se em quatro imagens que justificam seu apelido de moleque. Esse mesmo artifício de sugerir mobilidade pela repetição do personagem em momentos diversos irá repetir-se adiante, logo depois de mostrá-lo, já adulto, de bateia na mão, garimpando no rio (p. 16-17), numa prancha onde predomina o amarelo, a cor do ouro que Chico Moleque procura nas águas. Destaca-se nessa prancha a utilização de linhas diagonais indicativas de movimento e, principalmente, de sua utilização na representação do rio a fluir, uma clássica imagem da passagem do tempo. O tempo efetivamente passou para aquele menino que brincava na página anterior, agora ele é um homem robusto, afeito ao trabalho.
O texto relata que seu senhor lhe permitia fazer trabalhos para vizinhos em troca de pagamento, e a variedade de serviços que prestava pode ser vista na prancha seguinte (p. 18-19), repetindo o artifício de representar o mesmo personagem em diferentes ações. Essa mobilidade cessa na ilustração das páginas 20 e 21, onde vemos Chico Moleque, agora adulto e com uma grande família, afundar os pés no chão como raízes. Alforriado com o dinheiro de seu suor, ele cria voluntariamente outros grilhões, os de amor à terra que conquistou para si e sua família, a comunidade quilombola do Cedro, anos antes da Abolição da Escravatura no Brasil.
Esta bela imagem de Chico com os filhos ao colo transfigura-se na seguinte, onde ele mesmo já não aparece como homem, mas convertido numa frondosa árvore – um cedro provavelmente – com raízes firmes plantadas chão adentro e com numerosos frutos que são seus muitos descendentes. É a árvore genealógica das muitas famílias cedrinas de hoje. Essa ilustração às páginas 22 e 23 encerra a sequência de folhas amarelo-ouro do projeto gráfico, que retorna ao azul predominante das folhas iniciais.
A última prancha interna ilustrada (p. 24-25) retoma a imagem da capa e com ela dialoga. Na capa via-se o menino integrado à natureza e ao universo cósmico. Tanto nas imagens de abertura como de fechamento, ele é visto em liberdade, suspenso no ar. Contudo, não são a mesma imagem. Na capa, ele se dependura num galho de árvore (num elemento natural) e estende o braço para o chão; na última imagem, ele ganha impulso num balanço (num elemento fabricado) e se lança para frente, como em voo, rumo ao céu e à lua. A segunda metade da prancha, que não há na capa, mostra sob seus pés um pequeno conjunto de casas iluminadas, a Comunidade do Cedro, seu legado de liberdade.
O texto visual, no entanto, não se encerra aqui. Se nesse ponto virarmos o livro, veremos que a capa, agora invertida, compõe uma prancha dupla com a quarta capa, onde o menino está sentado sobre o galho da árvore, apontando para o céu em busca das estrelas. O padrão da folhagem, em contínuo perfeito da primeira à quarta capa, permite essa leitura. Nessas duas imagens, Chico Moleque não é uma silhueta negra, como no miolo do livro, mas é transparente. Ele se integra à paisagem, cobre-se de estrelas, confunde-se com o céu noturno, a morada dos heróis míticos. E ele é, para sua gente, um verdadeiro herói.
Sem dúvida, Maria Luiza Bretas não poderia ter feito melhor escolha ao pedir que Santiago Régis ilustrasse seu Chico Moleque, e este jovem ilustrador revelou toda a plenitude de sua capacidade criativa com este magnífico trabalho.
Diferentemente de outros quilombos, que reuniam escravos fugitivos, acossados pelo medo de donos cruéis, o Cedro foi criado por um escravo alforriado, que comprou a liberdade para si e sua família com o dinheiro obtido, ao longo de décadas, pelo trabalho remunerado que seu dono lhe permitia fazer em feriados e fins de semana. Num pedacinho de terra, também adquirido por ele, Francisco Antônio de Moraes, o Chico Moleque, deu início a uma pequena comunidade negra, congregando seus descendentes e algumas outras famílias. Para seu povo, ele ganhou a estatura de herói.
Esta história comoveu a autora, e ela decidiu contá-la, uma história verdadeira para ser compartilhada não apenas com as crianças do Cedro, mas também com outros brasileirinhos, afrodescendentes ou não. Conhecendo o trabalho do jovem ilustrador Santiago Régis, Maria Luiza pediu-lhe para fazer o projeto gráfico e a ilustração de seu livro, e é sobre essa leitura visual que nos iremos deter a seguir.
Dois elementos logo chamam a atenção do leitor ao manusear Chico Moleque, um sonho de liberdade, um relativo ao projeto gráfico, o outro relativo à ilustração.
No projeto, o formato do volume é quase quadrado (20 x 21 cm), porém o livro não se abre horizontalmente, da direita para a esquerda, como é usual, mas verticalmente, de baixo para cima. Assim, a cada virada de página o leitor se depara com uma prancha vertical dupla. Este artifício, conforme veremos adiante, facilitou ao ilustrador trabalhar visualmente com a questão das diferenças de classe, cruciais para o entendimento da sociedade no Brasil Colônia.
Quanto à ilustração, algo que logo impacta o leitor é a presença de duas cores dominantes, ambas de teor simbólico, o azul escuro e o amarelo forte. São as cores da noite e do dia, domínios da lua e do sol. Na capa e na folha de rosto, o título, primeiro sobre fundo azul e, depois, sobre amarelo, afirma ter o protagonista um sonho (noturno) de liberdade (luminosa). A escolha dessas duas cores certamente foi proposital e se alinha entre outras oposições que o livro, em seu texto e em suas imagens, propõe aberta ou veladamente ao leitor: liberdade x escravidão, céu x terra, passado x presente, juventude x velhice, cultura própria x cultura imposta, pobreza x riqueza, conforto x privação.
Nas capas e nas folhas de guarda a cor dominante é o azul, mas o amarelo do miolo já se insinua na forma de flores estilizadas, meros contornos de pétalas, três flores apenas em baixo, à esquerda, fazendo a transição para as folhas de guarda – esse breve hiato de silêncio que, no dizer de Angela Lago, prepara o leitor para a leitura. Esse espaço, tanto na abertura como no fechamento do livro, traz uma espessa ramagem negra sobre fundo azul, toda salpicada de flores. Anuncia-se, desta maneira, para o leitor uma história que se origina no seio da floresta, num amplo locus natural que logo ele saberá ser a África, o imenso entreposto de abastecimento de escravos à época.
A folha de rosto e as páginas 4 e 5, onde a narrativa começa, trazem um contraste agudo de cores. Primeiro, galhos secos sobre um violento fundo amarelo-ouro, depois, o negror de um céu noturno onde avulta, tomando quase a totalidade da página 4, uma imensa lua cheia rodeada de estrelas, planetas e cometas, com suas rotas tracejadas. Embaixo do pequeno texto, rente à margem inferior, há dois personagens cujas breves silhuetas em azul escuro pouco se destacam do fundo negro: uma criança que presta atenção às palavras de um adulto, um velho de costas arqueadas que aponta para o alto, para a lua.
A presença desse velho lembra a tradição dos povos africanos de preservarem na oralidade a sua genealogia ao recontarem infindavelmente, pela voz de um ancião, a história dos antepassados às novas gerações. O velho representado à página 5 conta para o menino a história de Chico Moleque, a mesma que o livro está prestes a revelar ao leitor. A enorme imagem da lua, esse grande espelho dos céus, reforça o vínculo especular entre o leitor e o menino sugerido pela ilustração.
Contradizendo o texto, que inicia afirmando que Chico Moleque “nasceu como qualquer outra criança”, a ilustração da seguinte prancha dá contornos místicos e cósmicos ao nascimento do menino. A lua cheia da página anterior converte-se em minguante, dentro da barriga da mãe negra e celeste, que inclina a cabeça ornada de contas brancas como estrelas e estende as mãos para a terra em oferenda. Seu menino é uma dádiva. Marcando a dobra de página, uma estrela, cuja queda é tracejada em amarelo, lembra a estrela de Belém e, logo abaixo do texto, se vê um bebê negro, movimentando pernas e braços. Não sobre uma manjedoura, mas sendo acolhido por mãos brancas de aristocráticos punhos rendados. O texto informa, então, que Chico Moleque é um menino escravo, capturado e vendido ainda na infância.
A próxima ilustração é uma bela visão do que ficou para trás, da liberdade que poderia ter pautado a vida do menino sob o sol da África, junto ao aconchego materno. É uma luminosa imagem das savanas e de seus animais, estampados na ampla saia da mãe, uma imagem que sugere movimento, amor e liberdade, situação que as naus portuguesas iriam destruir. O pano de fundo da seguinte prancha já não são as amplidões africanas, mas uma rosa dos ventos sobre cartas marítimas indicando direções a seguir. O movimento das saias maternas cede lugar às bravias ondas oceânicas, que se confundem com o ondulado das cabeleiras dos nobres, trazendo escravos para o Brasil. As embarcações que se equilibram sobre os cabelos são desenhadas como silhuetas negras para que não restem dúvidas sobre sua carga. São navios negreiros.
A virada de página revela claramente a intenção do ilustrador ao optar pelo formato que deu ao livro. A linha mediana que divide as páginas 12 e 13 é o retrato da sociedade da época: no alto, de roupas elegantes, rendas, meias e sapatos de fivela, os senhores; embaixo, de pernas nuas e pés descalços, os escravos. O traço com que são desenhados também atende a essa divisão social: a elite tem roupas e calçados bem delineados; os escravos parecem rudes esboços feitos a carvão. Uns e outros mostram apenas a metade inferior do corpo. Aqui, como de resto em todo o livro, os personagens não têm traços distintivos, o ilustrador não particulariza suas faces, não desenha olhos, bocas, narizes. São figuras anônimas, despersonalizadas, como Todo Mundo e Ninguém dos autos medievais.
Às páginas 14 e 15 começa a história de Chico no Brasil ao tempo do Ciclo do Ouro. Em meio a um cenário de casario colonial, o menino peralta que ora “estava aqui, [ora] já aparecia em outro canto” multiplica-se em quatro imagens que justificam seu apelido de moleque. Esse mesmo artifício de sugerir mobilidade pela repetição do personagem em momentos diversos irá repetir-se adiante, logo depois de mostrá-lo, já adulto, de bateia na mão, garimpando no rio (p. 16-17), numa prancha onde predomina o amarelo, a cor do ouro que Chico Moleque procura nas águas. Destaca-se nessa prancha a utilização de linhas diagonais indicativas de movimento e, principalmente, de sua utilização na representação do rio a fluir, uma clássica imagem da passagem do tempo. O tempo efetivamente passou para aquele menino que brincava na página anterior, agora ele é um homem robusto, afeito ao trabalho.
O texto relata que seu senhor lhe permitia fazer trabalhos para vizinhos em troca de pagamento, e a variedade de serviços que prestava pode ser vista na prancha seguinte (p. 18-19), repetindo o artifício de representar o mesmo personagem em diferentes ações. Essa mobilidade cessa na ilustração das páginas 20 e 21, onde vemos Chico Moleque, agora adulto e com uma grande família, afundar os pés no chão como raízes. Alforriado com o dinheiro de seu suor, ele cria voluntariamente outros grilhões, os de amor à terra que conquistou para si e sua família, a comunidade quilombola do Cedro, anos antes da Abolição da Escravatura no Brasil.
Esta bela imagem de Chico com os filhos ao colo transfigura-se na seguinte, onde ele mesmo já não aparece como homem, mas convertido numa frondosa árvore – um cedro provavelmente – com raízes firmes plantadas chão adentro e com numerosos frutos que são seus muitos descendentes. É a árvore genealógica das muitas famílias cedrinas de hoje. Essa ilustração às páginas 22 e 23 encerra a sequência de folhas amarelo-ouro do projeto gráfico, que retorna ao azul predominante das folhas iniciais.
A última prancha interna ilustrada (p. 24-25) retoma a imagem da capa e com ela dialoga. Na capa via-se o menino integrado à natureza e ao universo cósmico. Tanto nas imagens de abertura como de fechamento, ele é visto em liberdade, suspenso no ar. Contudo, não são a mesma imagem. Na capa, ele se dependura num galho de árvore (num elemento natural) e estende o braço para o chão; na última imagem, ele ganha impulso num balanço (num elemento fabricado) e se lança para frente, como em voo, rumo ao céu e à lua. A segunda metade da prancha, que não há na capa, mostra sob seus pés um pequeno conjunto de casas iluminadas, a Comunidade do Cedro, seu legado de liberdade.
O texto visual, no entanto, não se encerra aqui. Se nesse ponto virarmos o livro, veremos que a capa, agora invertida, compõe uma prancha dupla com a quarta capa, onde o menino está sentado sobre o galho da árvore, apontando para o céu em busca das estrelas. O padrão da folhagem, em contínuo perfeito da primeira à quarta capa, permite essa leitura. Nessas duas imagens, Chico Moleque não é uma silhueta negra, como no miolo do livro, mas é transparente. Ele se integra à paisagem, cobre-se de estrelas, confunde-se com o céu noturno, a morada dos heróis míticos. E ele é, para sua gente, um verdadeiro herói.
Sem dúvida, Maria Luiza Bretas não poderia ter feito melhor escolha ao pedir que Santiago Régis ilustrasse seu Chico Moleque, e este jovem ilustrador revelou toda a plenitude de sua capacidade criativa com este magnífico trabalho.